PARA ORGANIZAR O TRABALHO PEDAGÓGICO
NO ENSINO FUNDAMENTAL
Rosaura Soligo
(...)
Podemos
afirmar que as rotinas, ainda que tenham estruturas parecidas, são sempre
diferentes: cada uma deve ter um ‘toque’ que evidencie as características do
grupo específico para o qual foi elaborada e a história do trabalho realizado –
uma história que é singular porque nunca se repete igualmente, por mais que se
planeje o trabalho de modo semelhante.
O
planejamento da rotina é algo a ser inventado periodicamente: uma invenção que
depende da clareza do professor sobre os objetivos do ensino, sobre os
critérios de seleção dos conteúdos, sobre as formas de trabalhar didaticamente
com eles, sobre o conhecimento que têm (ou não) seus alunos. Uma rotina que é, ao
mesmo tempo, um espaço de invenção pedagógica do professor e uma forma de
organizar o tempo de aprender das crianças; ao contrário do que pode insinuar o
sentido negativo da palavra (de ‘mesmice’), entendemos que rotina significa
movimento, criação, produção de conhecimento.
Ao
planejar suas rotinas, o professor percorre um caminho de elaboração teórica,
de produção de teoria, da sua teoria sobre o próprio trabalho. Assim, o
planejamento é recriado continuamente a partir de sua análise, de um processo
de avaliação docente que indica até onde as propostas, as intervenções já
realizadas estão atendendo aos objetivos e até mesmo se estes estão ou não
adequados.
(...)
Outro
aspecto importante a considerar é que a explicitação dos propósitos do trabalho
para as crianças contribui para ‘engajá-las’ nas atividades, o que favorece o
bom andamento das coisas e a otimização do tempo. Nesse sentido, a recomendação
é:
•
informar o que se pretende com as atividades, para que compreendam que as
tarefas propostas
respondem
a algum tipo de objetivo/necessidade;
•
prepará-las antes de introduzir qualquer mudança ou novidade na rotina, não só
em relação às propostas de atividade, mas também à organização do espaço, à
utilização dos materiais, às formas de agrupamento, ao tipo de intervenção etc.
– tudo o que não é familiar causa estranhamento e tende a produzir uma agitação
que, embora natural, pode prejudicar de algum modo o andamento do trabalho se
as crianças não souberem as razões;
•
apresentar as atividades de maneira a incentivá-las a dar o melhor de si mesmas
e a acreditar que sua contribuição é relevante para todos;
•
criar um ambiente favorável à aprendizagem, bem como ao desenvolvimento de
autoconceito positivo e da confiança em sua própria capacidade de enfrentar
desafios (por exemplo, por meio de situações em que elas sejam incentivadas a
se colocar, a fazer perguntas, a comentar o que aprenderam etc.).
Ainda
sobre as propostas de atividade, uma última recomendação: elas devem ser o mais
simples possível para a criança realizar e o menos trabalhosa possível para o
professor preparar.
Propostas
em que o professor precisa desenhar, fazer fichas e organizar muitos materiais
alternativos e que as crianças precisam destacar, montar e gastar um tempo
enorme para cumprir a tarefa, se puderem ser substituídas por alternativas mais
simples, sem que haja prejuízo ao desafio colocado, devem ser simplificadas.
Planejamento
Para
que uma atividade seja considerada de fato uma situação de aprendizagem é
preciso que seja ‘ajustada’
às crianças para as quais ela se destina, é preciso que seja difícil e
possível, que seja desafiadora.
Como se vê, o que importa é a qualidade do desafio e não a quantidade de
recursos e o tempo gasto com sua preparação.
Para organizar o trabalho pedagógico no Ensino Fundamental
Por trás do que se faz
Para
compreender melhor a ‘rede invisível’ que há por trás das atividades escolares
cotidianas, daquilo que é apresentado como proposta aos alunos, é importante
tematizar um exemplo – e aqui a opção foi por um exemplo da área da linguagem
(no caso, a proposta de trabalhar com diferentes gêneros textuais), pois em certa
medida, inclui aspectos também de outras áreas.
A
tendência que se consolidou nos últimos anos, seja na Educação Infantil ou no
Ensino Fundamental, indica a necessidade inequívoca de trabalhar com os
diferentes textos que circulam socialmente*.
A
defesa do trabalho com a diversidade de gêneros textuais é justificada pela
certeza de que é de responsabilidade
da escola criar condições para que os alunos – sejam crianças, jovens ou
adultos – desenvolvam progressivamente suas diferentes capacidades, entre elas utilizar diferentes linguagens como meio para expressar e
comunicar ideias, interpretar e usufruir das produções da cultura e utilizar a língua para compreender e produzir mensagens orais e
escritas, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e
situações de comunicação.
Esses
objetivos amplos indicam os conteúdos a serem trabalhados: se, na escola, os
alunos têm direito de aprender a utilizar diferentes linguagens em diferentes
contextos, será então imprescindível desenvolver um intenso trabalho com a
diversidade textual.
Isso
implica levar em conta determinados critérios, ao selecionar os conteúdos: por
exemplo, para favorecer o desenvolvimento da capacidade de uso proficiente da
linguagem oral e escrita, objetivo principal do ensino da língua, é preciso
trabalhar pedagogicamente com situações que demandem escutar, ler, falar e escrever.
Portanto, escuta, leitura, fala e escrita são os conteúdos centrais durante toda a escolaridade.
Mas
será preciso também abordá-los de forma coerente com esse mesmo objetivo, o que
significa organizá-los e sequenciá-los segundo determinados pressupostos
metodológicos.
Dessa
perspectiva, o critério uso-reflexão-uso
parece ser o mais adequado para a organização desses conteúdos –
tradução, para as situações de trabalho com a linguagem, da sabedoria do
professor Paulo Freire, que sempre defendeu o movimento metodológico de ação-reflexão-ação para as situações educativas.
Assim, é possível tomar as possibilidades de utilizar a linguagem ao mesmo
tempo como ponto de partida e como meta do trabalho pedagógico. E o critério
para sequenciar o que se deseja ensinar implica considerar, ao mesmo tempo, o
nível de conhecimento prévio dos alunos e o grau de complexidade do que a eles
se apresenta como conteúdo.
Portanto,
o tratamento didático das atividades de escuta, leitura, fala e escrita segundo
esses pressupostos apoia-se na possibilidade de avaliar adequadamente o que
sabem ou não as crianças; do contrário, não se poderá organizar e sequenciar
situações de ensino que se pretendem ajustadas às suas potencialidades e necessidades
de aprendizagem.lanejamento
Assim,
a aparentemente simples proposta de trabalhar com a diversidade textual tem por
trás uma série de propósitos e outros tantos desdobramentos como decorrência.
Por exemplo, a depender do tipo de aprendizagem que se pretende favorecer, os
conteúdos podem ser organizados em atividades permanentes, atividades
sequenciadas, atividades de sistematização ou projetos.
Hoje
fala-se muito na importância do trabalho com projetos, entre outras razões,
porque eles possibilitam:
•
tomar a criança como protagonista da própria aprendizagem;
•
elaborar, conjuntamente com a turma, algumas propostas a serem desenvolvidas;
•
experimentar, na prática, a construção coletiva de um empreendimento, o que
tende a fortalecer o ‘espírito de grupo’;
•
construir algumas certezas compartilhadas e discutir incertezas;
•
contextualizar as propostas, o que é sempre uma vantagem pedagógica;
•
aproximar a ‘versão escolar’ e a ‘versão social’ de práticas e conhecimentos
tomados como conteúdos e planejar situações didáticas que se assemelham ao que
acontece fora da escola;
•
responder ao mesmo tempo a objetivos didáticos e a objetivos de realização do
aluno, nem sempre coincidentes;
•
trabalhar a favor de dois produtos ao mesmo tempo: o que é previamente definido
por todos como tal e – o mais importante – o aprendizado decorrente do projeto.
Entretanto,
projeto é apenas uma das formas possíveis de trabalhar didaticamente os
conteúdos – a depender
da natureza que eles têm e dos objetivos propostos, outras podem ser mais
adequadas, conforme indica o quadro a seguir.
|
ATIVIDADES
SEQUENCIADAS
|
ATIVIDADES
PERMANENTES
|
PROJETOS
|
ATIVIDADES
OCASIONAIS
|
O que são
|
São situações
didáticas articuladas,
que possuem uma
sequência de realização cujo principal
critério é o nível de dificuldade –
há uma progressão de desafios
que devem ser enfrentados pelos alunos para que construam um determinado
conhecimento.
|
São situações
didáticas propostas
com regularidade, cujo objetivo
é constituir atitudes, desenvolver hábitos etc. Por exemplo: para ampliar o repertório
de estratégias de cálculo
mental é preciso
participar sistematicamente de
situações em que esse conteúdo
está em jogo.
|
São situações
didáticas que se
articulam em razão de
um objetivo (situaçãoproblema)
e de um produto final.
Contextualizam as
atividades e podem
ser
interdisciplinares.
|
São situações em que algum
conteúdo
significativo é trabalhado sem
que
tenha relação direta
com o que está sendo desenvolvido
nas outras atividades ou projetos, ou situações de sistematização de
algum conhecimento
estudado em outras
atividades ou projetos.
|
Características
|
Funcionam
de forma
parecida
com os
projetos e
podem
integrá-los,
mas o
produto
final é apenas
uma
sistematização /fechamento.
|
A marca
principal
dessas
situações é a
regularidade
e, por
isso,
possibilita
contato
intenso com
um
tipo de conteúdo /assunto.
|
Ter uma
finalidade
compartilhada
por
todos os
envolvidos,
que se
expressa na
realização
de um
produto
final, cuja construção desencadeou o projeto.
|
Tratam os
conteúdos
significativos,
ainda
que não
façam parte
do
currículo da série,
ou
sistematizam
conhecimentos
estudados.
|
Tempo
de
Duração
|
Variável.
|
Repetem-se de forma
sistemática e previsível –
diária, semanal, quinzenal ou mensalmente.
|
Depende dos objetivos propostos
– podem ser dias ou meses.
Quando de longa
duração, os projetos
permitem o planejamento de suas
etapas e a distribuição do
tempo com os alunos.
|
Variável, mas
normalmente trata-se
de uma atividade
única.
|
Essas formas (ou
modalidades) de organização dos conteúdos são defendidas por Delia Lerner.
Os objetivos
didáticos representam capacidades a serem desenvolvidas pelos alunos, e os
objetivos deles próprios relacionam-se a necessidades pessoais, quase sempre de
realização imediata. Por exemplo, quando o professor lê diferentes textos para
a classe todos os dias, cuidando da qualidade e da adequação ao interesse,
certamente pretende que as crianças tenham contato com a diversidade textual,
que se familiarizem com a linguagem, que se interessem pela leitura em função
do que se pode ‘ganhar’ com ela, que compreendam algumas características dos
diferentes gêneros... Para as crianças, entretanto, os objetivos já são de
outra natureza: elas, com certeza, estarão muito mais interessadas nas
novidades trazidas por essas leituras.
Material de
sistematização produzido por Rosaura Soligo, Rosângela Veliago e Rosa Maria
Antunes de Barros
a partir das contribuições de Delia Lerner em É
possível ler na escola?, do livro Ler e
escrever na escola - o real, o possível e o necessário (Artmed, 2 Estas
propostas foram adaptadas a partir das sugestões contidas em Ensino
Fundamental de 9 anos -
Orientações para a inclusão de crianças de seis anos de idade (Brasília:
MEC/SEB, 2006).
Rosaura Soligo (Brasil)
Formada em Pedagogia e Psicologia, Mestre em Educação pela
UNICAMP, atualmente professora
de cursos de especialização para professores alfabetizadores e
coordenadora de projetos do
Instituto Abaporu de Educação e Cultura, com trabalhos de
assessoria a Secretarias de Educação
em vários municípios do país. Experiência com alfabetização de
crianças, formação continuada,
documentação da prática profissional, produção de material
pedagógico e vídeos educativos.
Membro da equipe de idealizadoras do PROFA (Programa de Formação
de Professores
Alfabetizadores) e de sua equipe de coordenação nacional.
Pesquisadora colaboradora do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC), na
Faculdade de Educação da
UNICAMP. Co-organizadora do livro ‘Porque escrever é fazer
história’ (Ed. Alínea, 2007) junto com
o
Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado, e autora de vários artigos na área da
educação.